“Alimento para o corpo e para a alma”: Campanha arrecada comida e livros para doação em Cabo Frio
- Júlia Machado
- Apr 17, 2021
- 5 min read
Projeto ajuda na democratização literária no município, mas especialistas mostram ações necessárias à médio e longo prazo
A Campanha Cabo Frio Solidária começou no início da pandemia do novo coronavírus, em 2020, arrecadando alimentos para atender as famílias que trabalhavam em um circo. O grupo que se uniu para ajudar esses funcionários, continuou a ação e expandiu sua atuação para áreas vulneráveis do município e de algumas cidades vizinhas. Atualmente, a cesta básica aumentou, e agora oferece material para além do sustento para o corpo, ofertando brinquedos e livros nos kits de doação.

A ideia de incluir a literatura na campanha foi inspirada pela ação realizada pela prefeitura de Montevidéu, no Uruguai, que em abril de 2019 começou a distribuir os livros junto das cestas básicas. Poucos dias após a divulgação da notícia, a Cabo Frio Solidária já estava se mobilizando para arrecadar livros.
Imagem: Arquivo Pessoal.
Voluntário desde a criação da campanha, Lucas Müller reconhece a importância da inclusão da arte e do lúdico em um momento em que a crise econômica se agrava e aumenta as disparidades sociais. “Quando levamos livros e brinquedos, além das cestas e kits de higiene, é uma forma de despertar consciências, de agradecer a vida, de valorizar o que deveria ser valorizado. Cada ser humano é único! Ninguém escolhe viver ou nascer nessa condição”, afirma.
As estradas de terra, casas improvisadas, falta de saneamento fazem parte da paisagem de bairros interioranos e em lugares da região rural no segundo distrito de Cabo Frio. São nesses locais, invisíveis para muitos moradores da cidade, que a campanha atua. E após um ano do projeto, não faltam histórias e emoção nas entregas. “Em Angelim, região quilombola, o pequeno Adrien com seus óculos, tateando os livrinhos na caixa, abriu um sorrisão e disse ‘Nossa é o livro do Patinho Feio! Eu sempre ouvi falar, mas nunca tinha tido contato!’”, o voluntário que também destaca a felicidade das crianças mais novas que pediam às mais velhas: “Me ensina a ler! Me ensina a ler!”, lembra Lucas.

Os livros fazem sucesso nas entregas, Lucas afirma que a recepção "tem sido maravilhosa! Surpreendente".
Imagem: Arquivo Pessoal.
Somando forças
Recentemente a Academia de Letras e Artes de Cabo Frio (ALACAF) e a Cabo Frio Solidária firmaram uma parceria para atender a demanda da cidade e levar comida e literatura para quem precisa.
A escritora cabo-friense e presidente da ALACAF, Jaqueline Brum, esclarece que já conhecia a campanha desde o início “temos pessoas da academia que fazem parte do projeto, então a gente está sempre muito atento a tudo que está acontecendo”, diz. “Achamos muito interessante essa preocupação em levar alimento para o corpo e para a alma, então agora de fato nós firmamos essa parceria que já existia desde o início”, destaca Jaqueline explicando o compromisso assumido pela academia de doar mensalmente alimentos e livros para compor as cestas básicas.
A campanha é voltada principalmente para livros infantis, mas obras de literatura adulta (como romance, filosofia, crônica, crítica e poesia) também são aceitas.
Imagem: Arquivo Pessoal
A informação como agente de transformação social
Apesar da importância da distribuição de livros nas periferias, para que a democratização do acesso à literatura e à informação seja efetiva, medidas mais complexas e de médio e longo prazo se fazem necessárias.
A assistente social Wania Costa explica que “através da literatura e da informação o usuário começa a enxergar novas perspectivas, novos horizontes e novas possibilidades, para que dessa forma possa construir o meio social em que vive”. Ela ainda destaca que além dos brasileiros não possuírem o hábito de ler com frequência.
Segundo dados da pesquisa “Retratos da Literatura no Brasil” realizada em 2019 pelo Instituto Pró Livro em parceria com o Itaú Cultural, 48% da população foi classificada como não leitora (o estudo usou como referência as pessoas que não declararam ter lido nenhum livro nos últimos três meses).
Wania também enfatiza a necessidade de promover o acesso às obras para pessoas com deficiência: “os livros contribuem para a formação intelectual e pessoal durante toda a vida, mas de modo especial em relação às crianças em processo de alfabetização. O ideal é que a apresentação da literatura ocorra de forma integral, inclusive envolvendo as pessoas com necessidades especiais”, finaliza.
Livros mais caros
A reforma tributária apresentada ao Congresso em julho de 2020, pode afetar para pior o número de leitores no Brasil. O texto prevê a união da cobrança do PIS/Pasep e do Cofins em um novo imposto, a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), que em tese teria uma alíquota de 12%. Uma das mudanças que a reforma propõe, é retirar a isenção de impostos sobre os livros, prevista por lei desde 2004. Como consequência, a taxação vai afetar o valor das obras também para o consumidor final.
Uma das justificativas apresentadas pelo ministro da economia, Paulo Guedes, foi de que a isenção de impostos sobre livros, beneficia quem tem mais poder aquisitivo, mas pouco foi falado sobre as ações para democratizar esse acesso entre as classes mais pobres.
Outro destaque do estudo "Retratos da Literatura no Brasil", é o fato de que a maioria dos leitores pertence às classes C e D/E (com 49% e 21%, respectivamente), que deixa claro que a tributação das obras afetaria o consumo desses grupos modificando também o total de leitores no país.
Wania avalia que o governo, tanto na área federal quanto na área estadual, não age de forma adequada para aumentar o acesso à literatura, “é uma forma de atingir a população e dessa forma não viabilizar conhecimento, autocrítica e motivação para a busca de melhorias sociais”, adverte.
O caminho para a democratização
Ainda existem muitos espaços invisibilizados em que o poder público não atua com muita intensidade, seja em meio urbano ou em zonas rurais. Aline Aguiar também é assistente social e enfatiza a necessidade do reordenamento, aprimoramento e articulação das políticas públicas. “Para isso, é necessário um diagnóstico socioterritorial onde seu objetivo será identificar as demandas e necessidades locais”, ressalta.
Olívia Singh atua na política pública de assistência social há 16 anos explica que a ampliação do acesso à literatura e à informação é “fazendo chegar esse direito à essas pessoas”, e a elaboração das políticas públicas passa pela participação popular. “Sem participação em conselhos não tem repasse de verbas, a reunião é ordinária ou extraordinária, quando necessário, e é aberta.”, esclarece. Ela reforça que existem casos em que a população não consegue se deslocar até as reuniões, e que os conselhos podem ser móveis para garantir a presença do público, “são os conselhos que vão deliberar e encaminhar para o executivo essas demandas”, informa.
Além dos conselhos, ela também reforça o diagnóstico socioterritorial. Olívia explica que os estudos de recolhimento e interpretação de dados que fornecerão embasamento para os gestores entenderem as necessidades de mudança, sejam elas estruturais ou sociais. Ela detalha o processo ideal para a atuação e identificação das necessidades em espaços mais vulneráveis: “o diagnóstico pode ser feito em participação nos conselhos, diagnóstico socioterritorial, levantamento de demandas, encaminhamento para os setores responsáveis e monitoramento”, conclui.
Enquanto há lugares que ainda carecem desse processo de atuação, a população se une em momentos emergenciais para auxiliar no que há de mais básico, o acesso à alimentação e à cultura. “Pela Cabo Frio Solidária temos feito a nossa pequena parte através da literatura infantil nas periferias e zona rural da cidade”, reflete Lucas, voluntário do projeto, “Não há nada, nada, que pague a alegria e sorrisos das crianças quando recebem esses livros”, comenta.
Serviço
A Campanha Cabo Frio Solidária aceita doação de alimentos, livros (infantis, juvenis e adultos) e produtos de higiene. As contribuições podem ser entregues na sede do projeto que fica próximo à rodoviária de Cabo Frio. Por conta da pandemia, a entrega deve ser agendada pelo telefone (22) 99856-3898. A equipe também pode buscar o material na casa do doador dependendo da quantidade. Você pode acompanhar as ações pelo Instagram @cabofriosolidaria.
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