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Resgate cultural e luta antirracista pautam evento internacional em Cabo Frio

  • Júlia Machado
  • Jun 21, 2021
  • 7 min read

A Jornada de Integração Cabo Frio - África estreita relações entre a cidade, Angola e Cabo Verde, e busca desenvolver políticas públicas afirmativas para os povos descendentes de escravizados.



Além das paisagens naturais, Cabo Frio atrai atenção pelo vasto legado histórico, que transparece nas ruas do bairro da Passagem, nos museus como o MART (Museu de Arte Religiosa Tradicional) e o Charitas, e em construções como a Fazenda Campos Novos, por exemplo. Apesar das riquezas naturais e históricas, a cidade foi construída através da exploração da mão de obra de escravizados e do genocídio de indígenas nativos. Os anos de segregação e apagamento não foram apagados, tampouco os direitos das minorias raciais foram completamente restituídos em pouco mais de um século após a abolição.


É com o intuito de reivindicar direitos para as populações descendentes dos povos escravizados, organizações da sociedade civil se unem no esforço para denunciar o racismo e preservar a memória, a história e a cultura de seus antepassados. O trabalho dessas organizações refletiu no calendário de eventos da cidade, que nesse ano realiza pela primeira vez a Jornada de Integração Cabo Frio - África. A atividade busca aproximar o município de Angola e Cabo Verde, outros dois países de língua portuguesa. Para além do idioma, a especialista em história e cultura afro-brasileira, Marcia Fonseca, ressalta a semelhança em relação à constituição geográfica entre os territórios e destaca que “os países têm belezas naturais e belezas turísticas”.



Turismo para além das praias


A população quilombola remanescente dos povos africanos foi diretamente afetada pelo racismo e pelos séculos de exploração e segregação.


A maioria das comunidades quilombolas ainda não possui a titulação de suas terras, o que agrava o estabelecimento dos direitos protetivos aos povos. Apesar da regularização ser de responsabilidade do governo federal, a Secretaria Adjunta de Comunicação afirma que a prefeitura em conjunto à Coordenadoria de Igualdade Racial e ao Ministério Público está acompanhando as reivindicações dos documentos de regularização fundiária dos quilombos.


Apesar dos desafios, para além da luta e resistência, os territórios quilombolas cabofrienses conservam de modo ativo a cultura e a história que remontam a origem do próprio município.


Patrícia Machado é campista de origem quilombola, e através de sua formação em turismo, desenvolve trabalhos de resgate e valorização da cultura da aldeia. Membro do Movimento Negro Unificado do Estado do Rio (MNU) e da União de Negros pela Igualdade (UNEGRO), Patrícia explica que esse trabalho protagonizado pelas comunidades quilombolas reforça a importância desses espaços e “traz o protagonismo e a oportunidade a muitos quilombolas de passarem a frente sua história e nos conscientizar”, afirma. “Os terreiros, barracões, quilombos, entre outros espaços se tornariam novas atrações e rotas turísticas, impulsionando o turismo local e, ao mesmo tempo, mostrando ao turista as riquezas culturais e religiosas do povo afro-brasileiro”, ela acrescenta ainda que para a realização de um projeto desse porte, é indispensável uma parceria do poder público com as comunidades quilombolas.


A Jornada de Integração proporcionou o diálogo oficial com lideranças das comunidades quilombolas da cidade durante o Seminário de Ressignificação dos Territórios Quilombolas, que ocorreu no dia 30 de maio. Nesse dia a prefeitura apresentou o projeto de “Circuito de Turismo de Base Comunitária”, que visa ressignificar os espaços através do turismo participativo desenvolvido pelos moradores da região que abrange os setores educacional, social, cultural, ambiental e de saúde.



A educação como recuperação da memória


Outra medida adotada durante a Jornada de Integração é a inserção do ensino da história afro-brasileira no currículo básico das escolas municipais. Marcia explica que essa inclusão foi uma conquista dos movimentos sociais organizados, que conseguiram acrescentar o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, em 2003 e, posteriormente em 2008, o ensino histórico-cultural indígena, como conteúdos obrigatórios nos currículos das escolas públicas e privadas. Ela enfatiza a necessidade de que os procedimentos para a inclusão do ensino atinjam a equipe escolar como um todo, incluindo as famílias, e acrescenta a importância disso “para que as minorias tenham acesso a representatividades, identidades positivas, a história de seus ancestrais, ao conhecimento e entendimento das lutas e resistências dos povos negros e originais do território, que hoje, chamamos de Brasil”, conclui.


De acordo com a Secretaria Adjunta de Comunicação da Prefeitura de Cabo Frio, o município atende às leis federais de obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena na rede de ensino, e explica que as escolas trabalham os conteúdos através das disciplinas de Arte, Literatura e História.


Em 2019, Marcia participou como coordenadora da equipe de supervisão escolar da Secretaria Municipal de Educação (SEME) e auxiliou na reformulação da matriz curricular do município de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Ela reconhece que a reestruturação do conteúdo das escolas reforçou a implementação das leis, mas frisa a importância e de ações educacionais antirracistas, assim como o mapeamento das necessidades da população através de pesquisas. “É um avanço local. Mas ainda é preciso dados para que políticas públicas sejam implantadas, com esforço de toda a sociedade”, afirma.


Marcia enfatiza que “A história precisa ser contada por quem faz a história, por seus descendentes e pares. Não só a história e cultura afro-brasileira, que fica obviamente em evidência, mas também dos povos originais. Histórias e culturas, que no Brasil, são indissociáveis”.


O pedagogo e coordenador do Movimento Negro Perifa Zumbi, Rafael Figueira, garante que a discussão e reflexão da história e da cultura afro-brasileira é determinante na interpretação da realidade atual, e afirma que a Região dos Lagos possui uma história de luta que deve ser lembrada nas escolas e para além delas. Ele destaca que a reformulação do conteúdo deve “apresentar o ponto de vista de quem foi colonizado, de quem teve as suas riquezas saqueadas, e a partir disso apresentar um histórico de luta, um processo de demonstração do que a história fez com os nossos povos”.


Uma ferramenta para o ensino é a aprendizagem através de práticas culturais como a dança, o teatro, e a literatura. Patrícia defende que além da dança, os costumes e a religião afro-brasileira também devem ter espaço no ensino. “É só começando a ensinar desde cedo, pela base, ou seja, as crianças, que conseguiremos combater efetivamente o racismo”, acrescenta.



Cultura viva


Jongo, Maculelê, Ciranda e Maracatu. Para além dos passos, as danças afro-brasileiras trazem a ginga, a tradição e a resistência dos povos africanos unida aos sincretismos e movimentos característicos da cultura brasileira.


O grupo GRIOT de Cabo Frio trabalha para manter a memória e a luta desses povos viva através da pesquisa e da difusão da cultura afro por meio das manifestações dinâmicas da dança, da música e do cinema. O projeto surgiu através do trabalho de Marcia (que também é professora de educação física) nas escolas em que lecionava, onde promovia aulas de dança e o ensino da cultura afro-brasileira. Em 2010, o projeto transpôs os muros das escolas e passou a agregar os adultos através de oficinas de dança e encontros com rodas de jongo.



O grupo também participou da Jornada de Integração em uma live nas redes sociais da prefeitura para compartilhar a experiência do coletivo. Imagem: Arquivo Pessoal.



De acordo com a professora de história, ativista e pesquisadora do coletivo GRIOT, Andreia Fernandes, o nome do projeto pauta a identidade do grupo e o objetivo do trabalho. GRIOT significa o sábio; aquele que é preparado para ser portador da história de seu povo e que se encarrega das tradições orais.




Inspirados pelo significado do termo, o coletivo se dedica à manter a memória e as tradições culturais, e para isso, conta com atividades como aulas de dança afro e roda de jongo na rua (temporariamente suspensas devido à pandemia), Tambor de Iaiá (grupo de afro percussão feminina) e o Cine Bocarra (sessão de cineclube com debate de filmes com temática afro). Imagem: Arquivo Pessoal.



Andreia destaca que o estudo através das práticas culturais, como é o caso da dança, permite a compreensão de outros aspectos da história e da sapiência africana. “As manifestações são muito completas, muito ricas culturalmente. Elas contam a história de um povo, contam as formas de se fazer e de vivenciar o dia a dia do povo negro, do povo indígena, a sua forma de comer, o que comer, como canta, como dança, como veste. Como essas manifestações estão associadas ao trabalho, à luta, à resistência, à força cultural, à capacidade artística, ao saber dos mais velhos…”, reflete.



A pauta antirracista


Atualmente, os reflexos do período escravocrata ainda afetam de modo direto os descendentes desses povos, que além de enfrentar a violência diária, ainda sofrem o racismo em termos estruturais quando não encontram no governo o aparato necessário para exercer seus direitos.


Com o intuito de promover a reflexão sobre o movimento racial com base em discussões sobre classe, o Movimento Negro Perifa Zumbi surgiu em 2014 com a união de ativistas que sentiam falta de uma representação que tivesse um recorte de raça. O grupo realiza ações em todo o estado do Rio de Janeiro, e durante a Jornada de Integração foi representado por Rafael em uma live com troca de experiências sobre o ativismo do coletivo.


O coordenador do movimento afirma que a discussão das pautas raciais e o resgate histórico já é um início para garantir os direitos desses grupos. “A luta antirracista é uma luta muito objetiva e subjetiva, a gente lida com ela todo dia, não só com xingamentos ou coisa do gênero, mas também com o apagamento histórico”, Rafael reconhece que apresentar a história da luta racial da região para a população “é uma grande forma de contribuição para a luta antirracista de questionamento cotidiano”, afirma.



A Jornada de Integração


O evento foi idealizado através de um encontro entre os cônsules de Angola e Cabo Verde, o prefeito de Cabo Frio, José Bonifácio, e o coordenador geral de Igualdade Racial, Manoel Justino, no consulado de Angola. Segundo a Secretaria Adjunta de Comunicação da Prefeitura de Cabo Frio, “a Jornada surge como um grande painel, não apenas de debates, mas um painel de visibilidade de ações já iniciadas pela Coordenadoria e pelas Secretarias de Educação e Cultura”.


A Jornada de Integração é aberta ao público e por conta da pandemia do novo Coronavírus, acontece de forma híbrida, com transmissão da programação via redes sociais da prefeitura.


O evento vai até o dia 17 de julho, e possivelmente entrará para o calendário de eventos da cidade como uma forma de resgatar a história e as contribuições dos povos africanos na construção de Cabo Frio e colaborar com iniciativas de combate ao racismo.





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