top of page

Gênero, literatura e Região dos Lagos: projeto une mulheres na escrita

  • Júlia Machado
  • Apr 1, 2021
  • 5 min read

Rede feminina promove atividades de capacitação para escritoras que desejam ingressar no mercado editorial


“Eu tenho escrito cada vez mais sobre as salinas e sobre o vento, quem sabe na ânsia de não perdê-los. E, quando eu presto atenção às outras mulheres à minha volta, tenho a impressão de que estão fazendo o mesmo. Esse é um pacto silencioso que nunca acordamos. Como metáfora, as salinas e o vento são dimensões da terra que nos pertencem.”


Pensar sobre gênero e territorialidade na literatura é o que move o projeto Mulheres de Sal. O trecho acima, de autoria da antropóloga Aline Moschen, compõe o prefácio da antologia literária lançada como resultado das ações de capacitação promovidas pelo projeto, e ressalta a influência da Região dos Lagos no processo de escrita.


Aline coordena as produções do grupo e explica que a região ainda carece de ações que estimulem as mulheres que desejam ingressar no mercado literário. “Nós temos um mercado editorial muito restrito na Região dos Lagos, são poucas as editoras que existem e não existem políticas de incentivo nem para as editoras nem para as escritoras, falta do poder público esse olhar para a literatura”, aponta. Outro desafio, segundo ela, é o receio e a insegurança no momento de divulgar as obras. “Nós temos todos os motivos do mundo para não publicar, para não expor o nosso trabalho. E para vencer isso só estando juntas e formando uma rede que é própria e autônoma entre mulheres”, acrescenta.



Coordenadora das Mulheres de Sal, Aline Moschen explica que o projeto era uma vontade antiga, e pôde sair do papel com incentivo da lei Aldir Blanc. Foto: Marilac Braga.



É através dessa união que as ideias tomam forma e as palavras começam a fluir para o papel. Poeta e professora de Geografia, Carolina Conceição reconhece a importância dessa conexão em prol da literatura: “ver mulheres reunidas para escrever faz com que a gente fique mais inspirada, mais animada”. Ela conta que não se colocava enquanto escritora profissional “justamente pela falta de incentivos, de ver outras pessoas fazendo isso. E ver muitas mulheres maravilhosas, escrevendo sobre coisas diferentes, partindo do mesmo espaço em que você está, que é a Região dos Lagos, é muito inspirador”, destaca.



Apesar dos desafios de se lançar no mercado editorial em uma região do interior, Carolina reconhece que a cidade de Cabo Frio é uma fonte de inspiração para suas obras. Foto: Divulgação/ Instagram



Juliana Gandard é estudante de Jornalismo e entusiasta da literatura. Ela diz que conheceu as mulheres de sal por acaso, “eu estava navegando no instagram e vi. Me chamou atenção e eu achei muito interessante”. A estudante mora em Cabo Frio e acompanha várias escritoras do Brasil pelas redes sociais, ela admite que pensou em se inscrever nas oficinas, mas por conta da rotina não pôde participar “eu achei uma ótima iniciativa, e que com certeza vai gerar muitos frutos aqui para a cidade”, comenta.


Escrever é uma simbiose entre o subjetivo, o sentimento e a técnica. Essa última pode envolver também os aspectos burocráticos referentes à pós-produção que antecede a publicação de uma obra. A atriz, poetisa e travaturga, Ágatha Pauer, enfatiza que o projeto proporcionou uma nova percepção da escrita. “Mudou os meus pensamentos, me trouxe uma visão técnica, uma visão sensível, onde eu pude conversar e pensar em como levar a minha voz para o mundo de forma profissional, mais editorial”, explica.


Praia, vento e sal


Para além do apelo turístico e econômico, a natureza da região também serve de inspiração para as artistas. “Eu vejo muito do ritmo da cidade, do modo de vida que eu tive impresso no meu ritmo de escrita também”, reflete Aline. A escritora de São Pedro da Aldeia, cidade do interior da Região dos Lagos do Rio, entende que a o ambiente moldou inclusive a sua personalidade. “Tem uma parte de mim que é mais introspectiva, mais observadora. E para mim, isso está totalmente ligado ao fato de ter crescido em uma cidade interiorana, de ter crescido em uma cidade pequena e em uma aldeia de pescadores”, reflete.


Na percepção de Ágatha, a cidade a afeta de modo inconsciente. “Quando eu escrevo no papel, o meu dedo é movido pela realidade cabofriense. Por ser um corpo que nasceu nessa cidade, a minha fala é de Cabo Frio, a minha vivência, o meu conhecimento é de Cabo Frio”, pondera. Ela destaca ainda o apelo que a região fornece aos sentidos e lembra que o mar é um elemento muito presente nas suas produções. “Ouvir o barulho das ondas, o vento que é mais geladinho quando se está perto da praia, os carros passando… traz uma sensibilidade e uma realidade característica de onde você mora”.


Gênero e literatura


Além de ser uma forma de expressão, a literatura também permite a autoafirmação de quem escreve enquanto sujeito. Carolina interpreta a escrita como parte essencial de quem ela é. “Para mim é ser quem eu sou. Se caio na questão da representatividade é por outras visões, então é a tradução de mim mesma, é mergulhar no mar de mim mesma”, reflete.


Apesar dos avanços da inserção feminina no mercado literário, Ágatha ressalta que em muitos casos o direito de escrever é negado às mulheres, que passam a ser representadas por homens que reduzem as personagens a estereótipos. “Acho que o primeiro impasse é adentrar esse espaço, ocupar esse espaço, e começar a reconstruir e ressignificar a vivência das mulheres na arte da escrita.”



“Mulher, travesti, preta e gorda”. Ágatha reforça que além de possibilitar que a mulher tenha o poder de narrar a sua história, esse direito deve ser plural e contemplar a diversidade. Foto: Arquivo pessoal.



“O papel da escritora vem daí, reforçar os tipos de mulheres, porque quando você escreve, você escreve várias personalidades femininas e no teatro eu pude me ver humana. Eu me transcendi de mim mesma”, analisa. “Sendo escritora eu posso construir os meus eu’s, não só da mulheridade (sic), mas da travestilidade”, completa a atriz.


Do papel para as telas


Ágatha também é digital influencer do projeto e foi uma das autoras convidadas a participar do documentário “Mulheres de Sal”. Com o objetivo de extrapolar a linguagem escrita, o curta-metragem foi pensado para aumentar a visibilidade das artistas.


Aline conta que uma das ideias era mostrar a pluralidade de escritoras na Região. “A gente diversificou o perfil das participantes para trazer olhares múltiplos sobre a literatura”, relata a produtora cultural.


O documentário, assim como a antologia literária estão disponíveis no YouTube e no site do projeto, respectivamente. Os links podem ser encontrados no instagram @literaturamulheresdesal.


As oficinas aconteceram no mês de fevereiro e foram financiadas pela lei Aldir Blanc, e o projeto prosseguirá com ações de incentivo à participação feminina no mercado literário. Aline conta que as próximas atividades envolvem convocatórias para publicação de livros escritos por mulheres da região. “Já começamos a trabalhar nisso e em breve vamos dar mais informações”, revela.


Comentarios


Caderno Cultural

  • Instagram
  • Facebook ícone social
bottom of page